Não Existe Sorte; Existe Persistência

segunda-feira, outubro 31, 2005

O Regresso do Vampiro Drak Cool

Tinha vestido o melhor fato, aquele de lapelas de veludo que guardava para os acontecimentos com A grande. Acontecimentos que, infelizmente, eram cada vez mais raros. Eram cada vez em menor número as festas para as quais era convidado. E aquelas, poucas, para as quais recebia em casa um bilhetinho de convite, ou acabava por esquecê-las, ou ficavam tão longe que ele, por seu turno, escrevia um bilhetinho em que agradecia o convite e desculpava a sua ausência. O pior é que acabava por se esquecer de os botar no correio mas pronto, sobrava a intenção... e os bilhetes, que se amontoavam num poeirento recanto do escritório. A verdade é que já não tinha forças nem disposição para viajar para o estrangeiro. E era cada vez mais perigoso, agora o tráfego aéreo era tão intenso que ao mínimo descuido, trás! uma colisão... e ele já não tinha saúde para estas coisas. O problema, ou parte do problema, estava em que a família se dispersara. Uns tinham regressado às origens, como afirmavam e, se por lá se davam mal, o orgulho impedia-os de o reconhecerem e muito menos de voltarem para trás. Havia o caso do primo Hipólyto, que agrupara a mulher, as amantes e a extensa prole e se pusera a caminho dos bosques do norte europeu... para regressar volvidas escassas semanas. Com a desculpa tosca de que não tinham arranjado casa em condições. Então e o primo Malaquyas? Esse, com a mania dos arbustos genealógicos, ou lá o que era, tinha empreendido demorada viagem pelas terras da Hungria. E isso para descobrir, erradamente, que todos eles descendiam de: a) um morcego megalómano ou: b) um lobo mongolóide ou: c) uma escada de corda. Estava agora a soro num hospital qualquer, dedicando-se à leitura de manuais de geometria descritiva nos momentos de lucidez.
E quanto à Marylina? Dera em vestir de branco e recusava-se a pintar o cabelo de negro, como manda a tradição. Mostrava uma clara tendência por iates, aviões privados, carros caros e casas de luxo, acabando por entrar na vida política... um escândalo para a família !
Quanto a ele, Abelardo Drak Cool, como cidadão pacato que era, pois bem, ficara em casa. No sentido mais literal do termo: vivia ainda entre as paredes que o tinham visto nascer. A casa não era já pálida sombra sequer do que fora no tempo do seu apogeu, mas os seus trezentos e vinte e quatro anos não eram muito exigentes: o caixão, a cripta arejada e uns quantos ratos e coelhos vadios para saciar o apetite, mais não pedia. Ainda fora crédulo ao ponto de julgar que as novas gerações, os filhos, por exemplo, ou até os sobrinhos, sei lá, se dariam ao trabalho de remodelar o velho solar, mas qual quê! Eles queriam era discotecas, roupas de marca e fotografias no papel cuchê da imprensa cor de rosa. Eram uns imprestáveis! Mas ele, ele lá ia mantendo, a duras penas, valha a verdade, a tradição. Continuava a festejar o Halloween, para citar só um exemplo, muito embora as grandiosas festas de antanho se achassem reduzidas a pequena reunião íntima. E uma vez por mês, a fim de não perder a prática, transformava-se, a custo, em morcego. Dava um voozinho de reconhecimento, que no geral acabava em cabeçada contra um candeeiro público, após o que se seguia um coma profundo cuja duração era variável. Às vezes, por desfastio e a fim de divertir os sobrinhos-netos, deixava-se tocar pelos raios do sol nascente, transformando-se em montinho de leves cinzas. Aquilo é que os catraios se riam e batiam palmas! Depois eram só umas horinhas na plácida escuridão do sarcófago egípcio (prenda de aniversário da avó Gwendolina, há quantos anos!) para ficar como novo. Também, apesar do avançado da idade, treinava a sua resistência aos malefícios do alho, ingerindo umas doutas capsulazinhas com extracto do dito, de manhã e à noite.
Mas desta vez estava a levar a coisa mais a sério; esmerara-se: não faltava o lacinho a preceito, em vez da gravata de que nunca gostara e, apesar da devastação produzida por inúmeras gerações de traças, o fato estava ainda assaz apresentável. Já não diria o mesmo dos sapatos, cujos saltos cambados e o verniz estalado denunciavam mais de dois séculos de uso diário. Mas enfim, pormenores. Aliás, o que contava não era a indumentária, mas sim o estado de espírito. E esse não podia ser mais positivo
A ocasião assim o justificava. Havia dias (perdão: noites) que rondava a loja de aluguer de vídeos: eram quase onze horas, ela devia estar prestes a sair. Por ela, entenda-se: uma rapariga alta, razoavelmente bonita, de ar saudável: as faces rosadas assim sugeriam. Ah, e com um bónus: não fumadora! Sim senhor, hoje é que era, já estava tudo arqui-planeado, agora era só deixar-se ficar, cuidadosamente dissimulado na sombra da entrada do prédio onde ela geralmente esperava o namorado. Era hoje que ia quebrar a sua triste dieta, dar rédea solta aos seus instintos, libertar a sua verdadeira natureza, saborear o elixir da vida... em palavras mais prosaicas: ia espetar os caninos no pescoço de alguém: assim que apanhasse a rapariga a jeit... ah, ali vinha ela, passo decidido a afastar o fresco da noite. Envolveu-se ainda mais na negra capa, vestimenta obrigatória para qualquer vampiro que se preze, via-a aproximar-se, todos os seus sentidos estavam alerta, o coração a pulsar, desmesurado... e os olhos a lacrimejar de súbito, protestando contra uma qualquer impureza que se alojara numa vista e estava a interferir com as lentes de contacto. Esfregou e abriu os olhos. Ali mesmo, a centímetros dele, achava-se agora aquele pescoço tenro. Reprimiu uma gargalhada de triunfo e descerrou os maxilares. Milímetro a milímetro o seu corpo foi-se felinamente aproximando do da jovem. Susteve a respiração: era importante que a vítima não desse por nada, era uma questão de prestígio pessoal e além disso uma descarga de adrenalina transtornaria o doce sabor do sangue fresco. Chegara o momento! Sentia o calor do corpo da sua presa, aspirava-lhe o perfume do cabelo, distinguia-lhe o pulsar de uma veia no pescoço... abriu a boca o mais possível... e tornou a fechá-la, atónito. Raios partam a falta de memória! Tinha-se esquecido da dentadura.

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial